Por Luiz Eduardo Motta[1]
Introdução
A relação da obra de Althusser com a formação social cubana data-se desde os anos 1960 quando lós seus textos iniciais começaram a circular na Ilha, e culminaram com a tradução do livro Pour Marx no ano de 1966[2]. Ademais, seus alunos estiveram presentes na formação social cubana ministrando cursos nesse contexto, isso sem falar na relação próxima de Régis Debray com Ernesto Che Guevara. O fato é que Althusser foi durante os anos 1960 e 1970 o pensador marxista mais conhecido no cenário internacional. A sua obra teórica e as sua posições políticas radicais (como o apoio aos movimentos revolucionários do Terceiro Mundo, à Revolução Cultural chinesa e ao conceito de ditadura do proletariado) em oposição às correntes reformistas do marxismo e dos partidos comunistas, tornaram-no o alvo central do debate da esquerda favorável ou contrária (na maioria dos casos) à sua posição teórico-política.
Com efeito, as suas afirmações quanto a ruptura epistemológica na obra de Marx em que este constituiria a partir de 1845 com a obra A ideologia alemã em parceria com Engels, a formação de um novo continente científico, a ciência da história (ou o materialismo histórico), e na qual formaria um novo discurso teórico de corte científico distinto do filosófico que predominou em suas obras de juventude marcadas pela influência de Hegel e Feurbach com fortes elementos idealistas. Essa fase da juventude de Marx tem como eixo central as noções e categorias de homem, alienação, trabalho, essência, liberdade, sujeito, trabalho alienado, por uma nova perspectiva de caráter científico - a ciência da história - onde Marx tem como conceitos centrais não mais o homem e trabalho alienado, e na busca da recuperação do homem de sua essência alienada para fixar um novo terreno de liberdade, mas sim do mundo produtivo constituído pelas contradições de classes, i.e., pela luta de classes. Assim sendo, a partir de 1845 até o final de sua vida, Marx buscou afirmar e aperfeiçoar os conceitos que emergiram nessa sua nova fase como modos de produção, relações de produção e forças produtivas, trabalho assalariado, mais-valia, formação social, superestrutura e infraestrutura, ditadura do proletariado, determinação em última instância, revolução proletária. Essa viragem teórica de Marx estabeleceu um novo léxico conceitual com implicância diretamente no movimento revolucionário do século XIX: não é mais o homem como categoria central da modernidade burguesa, mas sim a luta de classes e as suas contradições que ocupam esse lugar central no entendimento dos conflitos da sociedade moderna burguesa.
Neste artigo pretendo expor algumas das principais contribuições teórico-políticas de Althusser no campo do marxismo. Na primeira parte abordarei a sua contribuição conceito de contradição a partir de sua articulação da teoria de Mao Tsé-Tung e à psicanálise de Fred e Lacan, enquanto na segunda tratarei da inovação que Althusser deu ao conceito de ideologia ao romper com a perspectiva da consciência e caracterizar a ideologia enquanto inconsciente.
I) A contradição sobredeterminante
A introdução dos conceitos de contradição e sobredeterminação constituíram a grande contribuição de Althusser para o materialismo Histórico (ciência da história como ele mesmo define) da análise sobre as crises de conjuntura das formações sociais. Para Pascale Gillot o conceito de sobredeterminação, como também o de causalidade estrutural, sendo ambos extraídos da psicanálise, ocupam uma função importante no projeto de uma releitura do marxismo e do materialismo histórico que restitua sua cientificidade assim como sua originalidade teórica, releitura empreendida particularmente em Pour Marx e Lire le Capital (Gillot, 2010: p.11). Stuart Hall diverge de Gillot num aspecto, pois para ele “ao pensar sobre os distintos níveis e tipos de determinação, Pour Marx forneceu-nos aquilo que falta em Lire le Capital: a capacidade de teorizar sobre eventos históricos concretos, ou textos específicos, ou formações ideológicas específicas (o humanismo) como algo determinado por mais de uma estrutura (ou seja, pensar o processo de sobredeterminação). Creio que ‘contradição’ e ‘sobredeterminação’ são conceitos teóricos muito ricos – um dos empréstimos mais felizes de Althusser a Freud e Marx. (Hall, 2003: p. 164)
Além da psicanálise, a influência de Mao Tsé-Tung (2011) foi fundamental para a construção do conceito de contradição sobredeterminante e sobredeterminada nos seguintes aspectos: a) na multiplicidade das contradições desiguais, b) na relação da contradição principal e secundárias, c) na identidade dos contrários que diz respeito a troca de papéis das contradições (deslocamento), e d) na identidade dos contrários em uma unidade real.
A introdução desses conceitos servia para a compreensão da Revolução Russa (e por tabela as revoluções nas formações sociais do chamado Terceiro Mundo), e rompia com o viés reducionista econômico, ou concepção monista, haja vista que essa concepção operaciona exclusivamente com a contradição entre as relações de produção e forças produtivas, como a única determinante às demais instâncias do modo de produção. Ao incluir a teoria de Mao sobre o conceito de contradição, Althusser rompe criticamente com a concepção monista/redutora ao definir a existência de uma multiplicidade de contradições, e que a partir da fusão delas, numa dado conjuntura de uma formação social, possibilitaria a explosão revolucionária.
De acordo com Althusser “quando nessa situação entram em jogo, no mesmo jogo, uma prodigiosa acumulação de ‘contradições’, algumas das quais radicalmente heterogêneas, e não tendo todas a mesma origem nem o mesmo sentido, nem o mesmo nível e lugar de aplicação, e que portanto ‘se fundem’ em uma unidade de ruptura, não é mais possível falar da única virtude simples da ‘contradição’ geral. Certamente, a contradição fundamental que domina esse tempo (onde a revolução ‘está na ordem do dia’) é ativa em todas essas ‘contradições’ e até na sua ‘fusão’. Mas não se pode, entretanto, pretender com todo o rigor que essas ‘contradições’ e sua ‘fusão’ não sejam mais do que puro fenômeno dessa contradição” (Althusser, 1986: p. 98, 99).
Isso significa para Althusser que devemos pensar os processos revolucionários a partir de uma complexidade na qual se caracteriza por uma estrutura de contradições múltiplas e desiguais, visto que nenhum processo complexo nos é dado como o desenvolvimento de um processo simples mas como resultado de um processo complexo. Para Althusser “não temos essência originária, mas um sempre-já-dado (...) não temos mais uma unidade simples porém uma unidade complexa estruturada. Nós não temos mais, portanto, (sob qualquer forma que seja) de uma unidade simples original, mas o sempre-já-dado de uma unidade complexa estruturada” (Althusser, 1986: p. 203-204).
Althusser define que cada formação social possui um conjunto de estruturas nas quais possuem diferentes níveis (ou intâncias), com pesos e temporalidades desiguais. As formações sociais expressam esse todo-complexo no qual a sua unidade se dá por uma estrutura dominante, e tem como princípio uma determinação em última instância da estrutura econômica[3]. Assim sendo, há uma multiversidade de determinações (embora o econômico seja o determinante em última instância) com uma estrutura dominante já que expressa internamente nos seus níveis a contradição dominante, havendo alterações de dominação quando há deslocamento dessa contradição dominante para outra estrutura. Portanto, as contradições atuam de forma sobredeterminante, ou sobredeterminada.
Retomando a influência de Mao na teoria de Althusser, as diferenças entre as contradições e as relações destas com a estrutura dominante significam a existência da estrutura do todo. Isso não implica em dizer que as contradições secundárias sejam o puro fenômeno da contradição principal, e a principal seja a essência das quais as secundárias seriam os fenômenos. Distintamente disso, significa que as contradições secundárias sejam tão essenciais à existência da contradição principal, e realmente constituem a condição de existência desta última, do mesmo modo que a contradição principal constitui a condição de existência delas. O exemplo citado por Althusser é de que as relações de produção não são o puro fenômeno das forças produtivas: são também, a condição de existência dessas forças. A superestrutura não é puro fenômeno (ou reflexo) da estrutura, mas sim também a condição de existência desta. Esse condicionamento da existência de uma contradições pelas outras, não nega a estrutura com dominante que reina sobre as contradições e nelas (em especial a determinação em última instância pelo econômico). Para Althusser essa reflexão das condições de existência da contradição no interior dela mesma, essa reflexão da estrutura articulada com dominante que constitui a unidade do todo complexo no interior de cada contradição, é o traço mais profundo da dialética marxista, expresso pelo conceito de “sobredeterminação” (cf. Althusser, 1986: p. 214-215).
Como Althusser afirmava: “se eu insistir muito sobre essa ‘reflexão’, que propus a chamar ‘sobredeterminação’, é que é absolutamente necessário isolá-la, identificá-la e dar-lhe um nome, para se tomar teoricamente conhecimento da sua realidade, que nos impõe tanto a prática teórica quanto a prática política do marxismo. (...) A sobredeterminação designa, na contradição, a seguinte qualidade essencial: a reflexão, na própria contradição das suas condições de existência, ou seja da sua situação na estrutura com dominante do todo complexo. (...) É preciso admitir que a contradição deixa de ser unívoca (as categorias deixam de ter, de uma vez por todas, um papel e um sentido fixos), porque reflete em si, na sua própria essência, a sua relação com a estrutura desigual do todo complexo. Mas é necessário acrescentar que, deixando de ser unívoca, nem por isso se torna ‘equívoca’, produto da primeira pluralidade empírica surgida, à mercê das circunstâncias, e dos ‘azares’, o seu puro reflexo como a alma de tal poeta não é mais do que essa nuvem que passa. Muito ao contrário: deixando de ser unívoca, e portanto determinada de uma vez por todas, no seu papel e na sua essência, mostra-se determinada pela complexidade estruturada que lhe determina o seu papel como (...) sobredeterminada” (Althusser, 1986: p. 215).
Ao tratar do papel das estruturas no “todo-complexo”, Althusser destaca que a reprodução - e a transformação - dessas estruturas, dá-se pelo conjunto de práticas. Se as estruturas são estruturantes das práticas, elas também não deixam de serem estruturadas por estas. Significa, portanto, que as práticas são estruturadas (na reprodução) e estruturantes (na transformação). Althusser define como prática em geral todo processo de transformação de uma determinada matéria-prima dada em um produto determinado, transformação efetuada por um determinado trabalho humano, utilizando meios (“de produção”) determinados. Para Althusser o momento determinante do processo não é bem a matéria-prima, nem o produto, mas a prática em sentido estrito: o momento do próprio trabalho de transformação, que põe em ação numa estrutura específica, homens, meios e um método técnico de utilização dos meios. De acordo com Althusser, essa definição geral da prática inclui em si a possibilidade da particularidade: existem práticas diferentes, embora organicamente pertençam ao mesmo todo-complexo.
A “prática social”, a unidade complexa das práticas existentes numa sociedade determinada, as articula enquanto uma unidade diferenciada na qual uma prática predomina sobre as outras de acordo com a conjuntura, ou com a instância onde atuam, já que as instâncias não são “puras” e são compostas pelo conjunto das práticas, mas há predominância da prática que lhe seja correspondente. A prática social, portanto, comporta a prática econômica, a prática política, a prática ideológia e a prática teórica (cf. Althusser, 1986: p.167). A prática social não é uma “práxis” já que é distinta da afirmação reducionista de Gramsci de que para haver uma unidade para a formação de uma ação crítica tem de existir identificação entre a teoria e a prática (cf. Gramsci, 1981: p.51-52). Para Althusser, a prática teórica distingue-se da prática política, mas são articuladas para o conhecimento das contradições políticas, e, por seu turno, a prática política (revolucionária) tem na teoria o conhecimento das contradições para a constituição das estratégias políticas de ruptura. A teoria pode estar contida em “estado prático” na prática política, mas não é igual à prática teórica. Para Althusser, durante a Revolução de 1917 e nas reflexões de Lenin, a dialética marxista (produção de conhecimentos) encontrava-se na prática da luta de classes. A prática política produz transformações (revoluções) nas relações sociais, mas não se confunde com a prática teórica, já que há uma separação – e distinção - do concreto real em relação ao concreto pensado (cf. Althusser, 1986: p. 189; Marx, 2011: p.54-55).
É importante destacar o antieconomicismo de Althusser quando afirma a existência da acumulação de determinações eficazes sobre a determinação em última instância pelo econômico. A sobredeterminação torna-se inevitável e pensável desde que se reconheça a existência real, em grande parte específica e autônoma, irredutível a um puro fenômeno, das formas da superestrutura e da conjuntura nacional e internacional. O que significa dizer que a dialética econômica jamais age em estado puro. Há sempre uma desigualdade entre as instâncias nas formações sociais, e essa desigualdade não é definida pela exterioridade entre as estruturas, mas sim sob uma forma organicamente interior a cada instância da totalidade social, a cada contradição.
A presença do pensamento de Mao na construção dos conceitos de contradição sobredeterminante faz-se também presente nas definições de “não-antagonismo”, “antagonismo” e “explosão” na contradição. Quando Althusser afirma que a contradição é motriz e que ela implica uma luta real, das defrontações reais situadas em lugares precisos da estrutura do todo complexo, significa dizer que o lugar da confrontação pode variar segundo a relação atual das contradições na estrutura com dominante; é dizer que a condensação da luta de um lugar estratégico é inseparável do deslocamento da dominante entre as contradições. Esses fenômenos orgânicos de deslocamento e condensação são a própria existência da “identidade dos contrários”, pois possibilitam a ruptura que sanciona o momento revolucionário da refundição do todo. Desse modo, podemos “distinguir para a prática política entre os momentos distintos de um processo: ‘não-antagonismo’, ‘antagonismo’ e ‘explosão’. Caracterizaria o primeiro momento em que a sobredeterminação da contradição existe na forma dominante do deslocamento; o segundo, como momento em que a sobredeterminação existe na forma dominante de condensação; o último, a explosão revolucionária como momento da condensação global instável provocando o desmembramento e a recomposição do todo, ou seja, uma reestruturação global do todo sobre uma base qualitativamente nova” (Althusser, 1986: p.222).
II - Ditadura do proletariado
Althusser embora tenha tido sempre (pelo menos desde os anos 1960) uma posição rebelde dentro do PCF, a exemplo de seu apoio explícito ao maoismo e à Revolução Cultural chinesa, não tinha até então escrito nenhum ataque direto ao Comitê Central (CC) no que tange às posições do PCF no plano político interno, tampouco em relação à URSS. Entretanto, com a adesão do CC à estratégia eurocomunista, Althusser insurgiu contra essa posição reformista adotada pelo PCF a partir do XXII Congresso onde foi excluído o conceito de ditadura do proletariado de seu programa, e a democracia como um valor universal tornou-se a palavra de ordem central. Althusser ao criticar essa posição reformista do PCF defendeu, de um lado, o valor científico no marxismo do conceito de ditadura do proletariado, e, do outro, a experiência chinesa da Revolução Cultural como modelo de transição socialista ao comunismo devido à intensa crítica à burocratização do partido revolucionário.
A posição do PCF em relação ao abandono do conceito de ditadura do proletariado deve-se, para Althusser, por um lado, pela renúncia da análise concreta das relações de classe, e, por outro, da influência da ideologia burguesa sobre o partido, sobre sua concepção da teoria e sobre sua própria prática política (Althusser, 1979: p. 28). Nesse aspecto, Althusser segue de perto a posição maoísta, pois entende que o próprio partido revolucionário não está impermeável às contradições, e tampouco à ideologia burguesa que acaba por influenciar setores representantes de posições de direita do partido. Sua posição à essa questão é completamente antagônica às posições stalinistas por recusarem aceitar a existência da contradição no interior do partido. A despeito de Althusser concordar que inexista uma teoria do Estado marxista (pelo menos de modo sistemático), essa teoria está curso porque há como base tanto as observações e análises dos clássicos (Marx, Engels, Lênin e Mao), como também as experiências socialistas em diferentes formações sociais (Althusser, 1998: p.276)[4].
Essa oposição de Althusser ao PCF, e a sua defesa do conceito de ditadura do proletariado, encontram-se no contexto da sua obra em que se classifica como “textos sobre a crise do marxismo” nos quais se incluem o “22° Congresso”, “O que não pode perdurar no partido comunista”, “O marxismo como teoria finita”, “Enfim, a crise do marxismo”, “O marxismo hoje” e o inédito “Marx dentro dos seus limites”, textos escritos entre os anos 1977 e 1978.
Althusser, com efeito, demarca claramente em sua intervenção no 22° Congresso do PCF que embora os países do Terceiro Mundo estivessem num contexto favorável - a exemplo da descolonização dos países africanos como Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Cabo Verde, da vitória vietnamita sobre os EUA, da vitória do Khmer Vermelho no Camboja, e das lutas políticas e sociais na América Latina - o socialismo do Leste europeu estava vivendo uma crise. A crise do chamado “socialismo real” no Leste europeu demonstrava claro sinal de esgotamento do stalinismo, seja no plano político como também teórico.
Althusser observa que o abandono da ditadura do proletariado é por si mesmo um ato simbólico ao apresentar de modo espetacular a ruptura com o passado, abrindo a frente de um “socialismo democrático”, distinto do modelo soviético e do Leste europeu. Althusser aponta que a dominação burguesa na França não se restringe ao aspecto político e parlamentar, mas vai além ao incluir tanto a dominação econômica como também a ideológica. A ditadura do proletariado e de seus aliados é a resposta marxista a esse sistema de dominação. Para Althusser, “a forma política desta ditadura ou dominação de classe do proletariado é a ‘democracia social (Marx), a ‘democracia de massa’, a ‘democracia até o fim’ (Lênin). Mas, enquanto dominação de classe, esta dominação não se reduz unicamente à suas formas políticas: é simultaneamente dominação de classe na produção e na ideologia” (Althusser, 1978: p.39-40). Também a revolução não tem uma forma de ação a priori, o que significa afirmar que a via da violência revolucionária não está descartada: “é a relação de forças que determina as formas de ação revolucionárias possíveis e necessárias. Quando a burguesia está politicamente em estado de empregar a violência, quando a emprega, então as massas só podem responder com violência revolucionária. Mas se, após uma longa luta de classes e pesados sacrifícios, a relação de forças se encontra, aqui ou ali, altamente favorável ao proletariado e aos trabalhadores unidos, e altamente desfavorável ao imperialismo mundial e à burguesia nacional, então a passagem pacífica e até a democrática não só se torna possível como se impõe” (Althusser, 1978: p. 41).
Como Althusser deixa bem claro a ditadura do proletariado não é um conceito isolado em que possa ser “abandonado” ao seu destino solitário, pois está relacionado ao conjunto de conceitos forjados por Marx a partir de 1845. A “quebra” dos aparatos estatais ocupa um lugar central no entender de Althusser a respeito das práticas políticas emergentes durante o período de transição. Segundo Althusser “destruir o Estado burguês, para substituí-lo pelo Estado da classe operária e dos seus aliados, não é juntar o adjetivo ‘democrático’ a todos os aparelhos de Estado existentes, é mais do que uma operação formal e potencialmente reformista, é revolucionar na sua estrutura, na sua prática e ideologia os aparelhos de Estado existentes, suprimir alguns, criar outros, é transformar a formas da divisão do trabalho entre os aparelhos repressivos, políticos e ideológicos, é revolucionar os seus métodos de trabalho e a ideologia burguesa que domina as suas práticas, é assegurar-lhe novas relações com as massas a partir das iniciativas das massas, na base de uma nova ideologia proletária a fim de preparar o ‘enfraquecimento do Estado’, isto é, a sua substituição pelas organizações de massas” (Althusser, 1978: p. 51-52).
A posição de Althusser é clara: o socialismo é constituído a partir de uma ruptura radical com a política e o Estado moderno. Novas práticas políticas e ideológicas se constituem nesse momento de transição ao comunismo, e o papel das massas é fundamental para que impeçam a manutenção das velhas práticas políticas e ideológicas burguesas, a exemplo da burocracia e da ideologia do burocratismo que tanto assolaram os partidos revolucionários e os Estados de transição.
Em Marx dentro dos seus limites Althusser reitera a importância do conceito de ditadura do proletariado na teoria e na política marxista. No aspecto teórico evidencia a ruptura com o jovem Marx haja vista que a partir do 18 Brumário o Estado significa um aparelho, uma máquina, e não uma questão relacionada à alienação. O Estado é separado, o que significa dizer que o Estado não é idêntico à política, nem a vida genérica da espécie humana. O Estado é separado porque, como afirmava Marx, é um instrumento do qual a classe dominante se serve para perpetuar sua dominação de classe. Por isso que é estratégico que a classe operária tenha de conquistar o Estado, pois, como observa Althusser “não que o Estado seja universal em ato ou no todo, não que o Estado seja ‘determinante em última instância’, mas porque é o instrumento, a ‘máquina’, ou o ‘aparelho’, do qual tudo depende quando se trata de mudar as bases econômico-sociais da sociedade, isso quer dizer, das relações de produção” (Althusser, 1994: p. 436).
Embora o Estado seja separado, não significa que ele seja autônomo. Não obstante haja uma pluralidade de aparelhos (ideológico, repressivos, políticos), todos eles têm a mesma finalidade: a manutenção do poder da classe dominante. Os aparelhos por mais que sejam diversos e separados entre eles, são adaptados ao seu objetivo enquanto fazem parte de um todo articulado que é o Estado. E o Estado torna-se então “esse aparelho, essa máquina, que serve de instrumento à dominação de classe, e à sua perpetuação” (Althusser, 1994: p. 458). Essa separação do Estado recebe, então, um novo sentido. O Estado é “separado” porque o seu corpo é moldado para produzir uma transformação de energia. É um corpo “especial” tal qual um “metal especial” cuja natureza especial é constituída por agentes de Estado, militares, policiais, agentes da justiça, agentes de diversas administrações. O Estado como define Althusser, é uma máquina produtora de um tipo de energia específica que é a do poder legal, uma máquina que produz força (violência) calcada na lei (cf. Althusser, 1994: p. 477-478).
Além disso, Althusser ressalta que o conceito de ditadura do proletariado não pode ser confundido com um regime político, como Lênin já dizia em sua polêmica com Kautsky, haja vista que todo Estado é uma das formas da dominação de classe. De acordo com Althusser “a dominação de classe abrange o conjunto das formas econômicas, políticas e ideológicas de dominação, o que isso quer dizer da exploração e da opressão de classe. Nesse conjunto, as formas políticas ocupam um setor mais ou menos extenso, mas sempre subordinado ao conjunto das formas. E o Estado torna-se então esse aparelho, essa máquina, que serve de instrumento à dominação de classe, e à sua perpetuação” (Althusser, 1994: p.458). O conceito de ditadura no marxismo, portanto, não pode ser restrito, ou reduzido, a uma forma de regime político já que há uma variedade de formas de dominação que ultrapassam a política e o Estado. Isso significa dizer, como ressalta Althusser em nítida concordância com Marx e Lênin, que a ditadura do proletariado tem como objetivo a forma mais larga de democracia, ou, em outras palavras, a forma política da ditadura do proletariado torna-se a mais ampla forma de democracia. Essa última expressão coloca a forma política no seu lugar, já que não reduz todas as formas de dominação somente à forma política. E, além disso, não se reduz a forma de dominação política exclusivamente na violência nua e crua típica de uma ditadura segundo a definição desta enquanto um regime político (cf. Althusser, 1994: p.461).
Apesar dessa separação do Estado, não significa que ele tenha uma relação estanque com a sociedade. Longe disso, Althusser tece uma severa crítica tanto a Hegel como a Gramsci pela diferenciação da sociedade política e da sociedade civil, porque o Estado sempre penetrou profundamente a sociedade civil, não só através do dinheiro e do direito, não só através da presença e intervenção dos seus aparelhos repressivos, mas também através de seus aparelhos ideológicos. Para Althusser, o Estado sempre foi “ampliado”, não sendo um fenômeno recente, ou restrito aos países de “democracia avançada”. Contudo, como ele afirma, as formas dessa ampliação mudaram no decorrer do tempo, desde a monarquia absoluta até o Estado do capitalismo imperialista (cf. Althusser, 1998: p. 287-288).
Nessa conjuntura do final dos anos 1970, em meio à emergência da crise do socialismo do Leste europeu e do avanço do programa reformista do eurocomunismo, Althusser demarca claramente a sua posição de ruptura com essas duas perspectivas no campo da esquerda ao reivindicar a influência dos princípios da Revolução Cultural chinesa ao estabelecer a separação do partido revolucionário do aparato estatal. Essa sua posição converge com a esquerda revolucionária italiana aglutinada no grupo do Manifesto, tendo à frente como uma de suas principais lideranças Rossana Rossanda. A convite de Rossanda, Althusser escreveu o texto O marxismo como teoria finita em 1978 no qual se desencadeou um intenso debate entre os intelectuais italianos e franceses, e gerou diversas críticas pelos defensores do socialismo por via pacífica, como também os que questionaram Althusser quando este afirmou a inexistência de uma teoria do Estado marxista. Todavia, o fio condutor principal desse artigo é a crítica de Althusser à fusão do Estado com o partido revolucionário que se tornou o dique de contenção para os avanços das transformações durante o período de transição socialista, ou da ditadura do proletariado, problemática essa já observada por ele no texto anterior Enfim, a crise do marxismo (cf. Althusser, 1998: p. 277-278).
Althusser demarca bem essa questão quando afirma que “por princípio, coerentemente com a sua razão de ser política e histórica, o partido deve estar fora do Estado, não só do Estado burguês, mas com mais razão ainda, do Estado proletário. O partido deve ser o instrumento número um da “destruição” do Estado burguês, antes de se tornar, prefigurando-o, um dos instrumentos do desaparecimento do Estado. A exterioridade política do partido em relação ao Estado é um princípio fundamental que se pode encontrar nos raros textos de Marx e de Lenin sobre essa questão. (Arrancar o partido do Estado para entregá-lo às massas: essa foi a desesperada tentativa de Mao na revolução cultural). Sem essa autonomia do partido (e não da política) em relação ao Estado, não se sairá jamais do Estado burguês, por mais que ele seja ‘reformado’” (Althusser, 1998: p. 290).
Althusser defende a posição maoísta de que o partido revolucionário não poderia ser como os demais, i.e., um apêndice do aparelho político-ideológico do Estado típico das repúblicas modernas, limitado somente à representação e ao procedimento parlamentar. O partido revolucionário tem de permanecer fora do Estado por meio de sua atividade entre as massas, para impulsioná-las à ação de destruição-transformação dos aparatos do Estado capitalista e da extinção do novo Estado revolucionário. Para Althusser, o nó górdio da questão é o próprio Estado: seja sob a forma política da colaboração de classe ou da gestão da “legalidade” existente, seja o partido “se transformando no Estado”; e o dique de contenção a essa burocratização do partido-Estado é no seio do movimento de massas.
Uma posição a se destacar em Althusser é a oposição dele ao idealismo presente em Marx, e largamente difundido pelos defensores da “ontonegatividade”, sobretudo pelos de corte lukasciano, que rejeitam a existência da política e da ideologia no comunismo no chamado “reino da liberdade”[5]. De acordo com Althusser “admito que o comunismo seja o advento do indivíduo finalmente libertado da carga ideológica e ética que faz dele ‘uma pessoa’. Mas não estou tão seguro de que Marx entendesse assim essa questão, como o atesta a constante vinculação que ele estabelece entre o livre desenvolvimento do indivíduo e a ‘transparência’ das relações sociais finalmente livres da opacidade do fetichismo. Não é por acaso que o comunismo aparece como o contrário do fetichismo, o contrário de todas as formas reais nas quais aparece o fetichismo: na figura do comunismo como o inverso do fetichismo, o que aparece é a livre atividade do indivíduo, o fim da sua ‘alienação’, de todas as formas da sua alienação: o fim do Estado, o fim da ideologia, o fim da própria política. No limite, uma sociedade de indivíduos sem relações sociais” (Althusser, 1998: p. 291).
Essa concepção idealista do comunismo obscurece mais do que esclarece o fato de que as relações de produção ainda permanecem na sociedade comunista, e, consequentemente, as suas relações sociais e as suas relações ideológicas. A não existência do Estado não significa o fim da política. A política, com efeito, não seria mais a mesma que emergiu na modernidade burguesa, mas esta política seria substituída por uma política diferente, uma política onde o Estado inexiste, lembrando que mesmo na sociedade capitalista o Estado e a política não se confundem, ou seja, não são a mesma coisa[6].
Numa posição completamente adversa à permanência de traços idealistas em Marx e no marxismo, e numa tomada de posição pelo materialismo Althusser afirma “a experiência demonstra que a representação do comunismo que os homens — e especialmente os comunistas — fazem, por mais vaga que seja, não é estranha ao seu modo de conceber a sociedade atual e as suas lutas imediatas e futuras. A imagem do comunismo não é inocente: ela pode nutrir ilusões messiânicas que garantiriam as formas e o futuro das ações presentes, desviá-las do materialismo prático da ‘análise concreta da situação concreta’, alimentar a idéia vazia de ‘universalidade’ — que se encontra em algumas expressões equívocas similares, como o ‘momento geral’, no qual uma certa ‘comunidade’ de interesses gerais será satisfeita, como se fora a antecipação daquela que poderá ser um dia a universalidade do ‘pacto social’ em uma ‘sociedade regulada’. Esta imagem alimenta, enfim, a vida (ou a sobrevivência) de conceitos dúbios, com os quais, sob o modelo imediato da religião, da qual não forneceu nenhuma teoria, Marx pensou o fetichismo e a alienação, conceitos que, depois de 1844, retornarão com força nos Grundrisse e deixarão ainda os seus vestígios no Capital. Para decifrar o enigma é necessário retornar à imagem que Marx fazia do comunismo e submeter esta imagem problemática a uma crítica materialista. É através desta crítica que se pode perceber o que ainda resta em Marx de uma inspiração idealista do Sentido da história. Teórica e politicamente, vale a pena fazê-lo” (Althusser, 1998: p. 292).
Para terminar esse texto e concluir com as observações de Althusser sobre a prática política na fase comunista, se o marxismo é a teoria das distintas práticas articuladas (ideológicas, políticas, econômicas, teóricas) é certo que estas não desapareceriam num momento comunista, mas sim que teriam outra qualidade, outro conteúdo, se entendermos que os processos são constituídos por rupturas e não por continuidades.
Bibliografia
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MAO TSÉ-TUNG. “Sobre a contradição” in Obras escolhidas, volume 1. São Paulo, Alfa - Omega, 2011.
MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
[1] Professor Adjunto de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro. luizpmotta63@gmail.com [2] O livro foi traduzido em Cuba com o título Por Marx diferenciando-se da editora Siglo XXI por Marta Harnecker intitulada La revolución teórica de Marx. [3] Foi em Engels (em sua carta dirigida a Joseph Bloch no ano de 1890) que Althusser buscou a definição da última instância pelo econômico, na medida em que as demais estruturas também têm o seu peso e autonomia. [4] Essa observação consta no texto “Enfim, a crise do marxismo” de 1977. [5] Essa é a posição de José Chasin e de seus seguidores no Brasil. Sua tese é explicita no artigo “Marx – a determinação ontonegativa da política” de 1993. [6] “Em 1847, Marx e Engels explicam que o fim do Estado (a sua extinção) implica o fim da política. Logicamente, se (como o demonstra a Comuna) o fim do Estado começa imediatamente, e se este ‘fim’ não é uma diferença de grau, mas a combinação contraditória de duas tendências em luta, então o ‘fim da política’ deve também ‘começar’ imediatamente. No entanto, a tendência real que se esboçava já na Comuna, é totalmente diferente: é a constituição, de início hesitante e frágil, duma outra forma de ‘política’” (Balibar, 1975: p. 154).
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